sábado, 17 de junho de 2017

Sobre Diferenciais

Até agora, este blog só contou histórias sobre o Fiestinha, ou sobre adaptações e upgrades feitos no carro, ou sobre experiências em pista, ou sobre mim, ou sobre meus vizinhos...

Nada mais natural, afinal de contas, foi pra isso que o blog foi criado, e não tenho a menor intenção de mudar de rumo por aqui.

Via de regra, não tenho motivos para falar sobre peças de performance ou adaptações que eu nunca vou colocar no Fiestinha.

Mas tenho vontade de me aprofundar sobre alguns temas (geometria e suspensão é um deles), e por mais que muita gente já entenda os princípios básicos de temas mais profundos, ou mesmo que uma boa pesquisada na Internet dê conta do recado, bom, gostaria de falar um pouco sobre como funcionam os carros.

Hoje vamos falar um pouco sobre diferenciais. 

  
  
Diferenciais

Imagine um cone (como uma casquinha de sorvete) rolando sobre uma mesa. Ela irá girar formando um círculo, ou ao menos irá rodar em forma circular, como se estivesse fazendo uma curva.

Agora imagine um cilindro (como um rolo de papel alumínio) rolando sobre essa mesma mesa. O seu trajeto será retilíneo, e o cilindro andará sem se desviar de seu trajeto.

Isso acontece porque, no caso da casquinha de sorvete, o corte da extremidade externa do cone tem um perímetro maior que o da extremidade interna, enquanto no rolo de papel alumínio, o corte de ambas as extremidades possuem o mesmo perímetro.

Em outras palavras, quando o contato de uma extremidade do objeto se desloca mais do que a sua outra extremidade, o objeto fará uma curva.

Mas pense que a figura (seja o cone, seja o cilindro) não precisaria, necessariamente, ter tamanhos de extremidades diferentes (como num cone), desde que a proporção de giro das extremidades não fosse direta.

Ora, se o rolo de alumínio, no nosso exemplo, não tivesse toda a sua extensão em contato com a mesa, mas se apenas as suas extremidades fizessem esse contato (como as rodas e pneus de um carro), e se suas extremidades fossem ligadas por um eixo que permitisse que suas extremidades girassem em velocidades diferentes, bem aí o cilindro seria capaz de fazer o mesmo trajeto que o cone.

E é exatamente aí que entram os diferenciais. 

Os diferenciais são dispositivos mecânicos que permitem que o torque da transmissão seja aplicado a dois semi-eixos (na verdade, semi-árvores), permitindo que as rodas de um carro girem em velocidades (e até mesmo sentidos) diferentes.

Via de regra, a indústria automobilística vende carros com diferenciais simples (ou abertos), já que para o uso diário, e para o homem médio, é importante ter a rodas motrizes sendo capazes de fazer curvas fechadas e manobras a baixa velocidade.

O vídeo abaixo explica bem como funcionam os diferenciais simples: 
  

A engenhosidade por trás dessa peça é simples e fantástica ao mesmo tempo: a força do motor é aplicada sobre uma coroa, que gira dois pequenos pinhões de outro sistema mecânico, estes de forma transversal ao eixo motriz.

Esses dois pinhões, por sua vez, movimentam os dois lados do eixo motriz, permitindo, ainda, que os semi-eixos se movimentem com velocidades diferentes e autônomas.

Em alguns carros com motor dianteiro e tração traseira, o diferencial vem logo após o cardan, sendo esta a árvore que transmite a força ao diferencial.

No caso dos carros dianteiros (com tração e motor dianteiro transversal), contudo, e em sua grande maioria, o diferencial faz parte do transeixo.


Pera, pera, pera...

Motor transversal? Transeixo? O que é isso? 

Bem, vamos lá. Poderia gastar um bom tempo falando sobre a disposição de motores, as formas de tração, e os tipos de câmbios utilizados, mas isso ia levar um bom tempo.

Então, para resumir, vamos tomar o exemplo do Fiestinha: originalmente (e mesmo após o swap), o Fiesta usava o motor instalado na dianteira de forma transversal, que é também como a grande maioria dos carros são fabricados hoje em dia.

Um carro de tração dianteira é aquele onde a força motriz é aplicada sobre as rodas dianteiras (dãã), e a configuração de motor transversal é aquela onde a linha do motor (ainda que não seja um motor em linha) se posiciona de forma transversal ao comprimento do carro, ou seja, de forma cruzada.

Dessa forma, a disposição do motor, na configuração transversal, encontra-se paralela ao eixo motriz.

Pensando num motor em linha (como o Duratec), imagine que os cilindros ficam alinhados com o eixo dianteiro, ou seja, fica disposto de forma transversal ao comprimento do carro. 

Já um carro com configuração de motor longitudinal é aquele em que o motor é montado no mesmo sentido que o comprimento do carro, ou seja, cruzado em relação ao eixo motriz.

No caso dos carros de tração dianteira e motores transversais, a caixa de câmbio (que tem por função básica escalonar a força originária do motor) geralmente agrega algumas outras funções, como por exemplo, o diferencial. Essa configuração se chama transeixo.

É o caso do Fiesta, que originalmente usava o IB5, e hoje usa o IB5+, um transeixo compatível com o Duratec 2.0 (outra opção de transeixo era o MTX 75, mas isso é tema para outra oportunidade).

Geralmente, quando o diferencial fica separado do câmbio (caso da maioria dos carros de motor dianteiro com tração traseira, por exemplo), o diferencial fica em uma carcaça blindada que o mergulha inteiro em óleo.

Mas no caso dos transeixos, o diferencial aproveita a própria caixa selada do câmbio para sua lubrificação, otimizando espaço e peças, reduzindo peso e componentes.

Fica muito mais fácil entender visualizando algumas imagens: 

Diferencial do MTX 75 

Diferencial do IB5 

Note como o diferencial tem um belo recorte para permitir sua lubrificação dentro da caixa de câmbio.


E como o diferencial funciona?

Veja a figura abaixo. Nela visualiza-se o diferencial (à esquerda, na parte de cima) montado na caixa de câmbio, sendo que a base do diferencial é ligada a uma coroa, que recebe a força da transmissão. 


Por sua vez, e apesar de não se visualizar na imagem acima, o diferencial liga os dois semi-eixos do eixo motriz (sim, o eixo dianteiro do seu carro, na verdade, é formado por dois semi-eixos).

Assim, quando o motor gira o seu volante, transferindo força à transmissão, esta gira a coroa do diferencial, que transmite a força então para os dois semi eixos, fazendo com que o eixo motriz impulsione o carro.

Note que dentro do diferencial, há um pequeno eixo transversal aos semi-eixos ligando dois pinhões.

Via de regra, esse pequeno eixo vai girar juntamente com o conjunto dos semi-eixos, mas sempre que houver maior resistência em um dos lados do eixo motriz (ou seja, em um dos semi-eixos), o diferencial permitirá que o outro lado se movimente com maior liberdade.

E é graças a isso que a grande maioria dos carros consegue fazer manobras e curvas fechadas a baixa velocidade.

Não fosse pelo diferencial, teríamos que fazer cinquenta mil manobras antes de finalizar uma baliza, além de correr o risco do carro seguir reto numa curva. 

Graças ao diferencial as mamães conseguem manobrar (ou não) seus SUVs nos shopping centers...

Mas nem tudo é glória e alegria. Os diferenciais ajudam muito o homem médio a fazer manobras em baixa velocidade, mas como eles se comportam em situações extremas?

Bem, o grande problema, aqui, é lembrar que a força sempre vai procurar o caminho mais fácil.

Pense em uma mangueira bifurcada: se um dos lados da bifurcação estiver parcialmente obstruído, a água tenderá a sair em maior volume do outro lado.

O diferencial funciona da mesma forma: se uma das rodas do eixo motriz oferecer menos resistência, é para lá que a força será direcionada.

Acontece que em situações extremas, existem grandes chances de que o diferencial desperdice a força do motor.

Pensando em uma situação de pista, como fazer uma curva no limite dos pneus, o diferencial irá fazer com que a roda do lado interno, por ter menos tração, acabe recebendo mais força, podendo destracionar, desperdiçando a força do motor (que se concentrará no pneu já sem tração).

O mesmo pode acontecer com um carro de trilha: se apenas uma de suas rodas vier a atolar, o diferencial fará com que a força seja jogada na roda livre, dificultando a saída do veículo. 


Diferencial blocado

Para corrigir as situações exemplificadas acima, é possível usar um diferencial blocado, ou diferencial soldado, mas que não tem muito efeito prático para o dia a dia. 


Na verdade, o uso de diferenciais extremamente travados (ou o uso de nenhum diferencial) tem uso muito específico, e dificultaria a vida de qualquer um que se aventurasse a usar o carro em trânsito pesado de cidade.

O pessoal do drift usa muito esses diferenciais soldados (que acabam perdendo a função de permitir que as rodas girem de forma independente), mas no caso deles, é até necessário para fazer com que as duas rodas do eixo traseiro destracionem. Se fosse utilizado um diferencial aberto, seria muito mais difícil destracionar as duas rodas, já que a força aplicada sobre o eixo motriz se concentraria diretamente no semi-eixo que se soltasse primeiro. 

Carros de arrancada, que não precisam se preocupar tanto em fazer curvas, também utilizam diferenciais blocados.

Isso acontece porque, no caso de se usar um diferencial aberto, o limite de torque aplicável sobre o eixo motriz é o limite de aderência de um dos pneus (qualquer um deles).

Quando se usa um diferencial blocado, esse limite praticamente dobra (ok, eu sei que a matemática é um pouco mais complexa que isso), já que o torque é aplicado por igual sobre as duas pontas do eixo motriz, aproveitando a aderência dos dois pneus do eixo.

Porém curvas e manobras, sem um diferencial aberto, são muito mais complicadas de se fazer, exigindo ângulos maiores de contorno, e sempre acabarão arrastando um dos pneus pelo chão.


LSD

Daí você pergunta: poxa vida, poderia existir um meio termo, não? 


E existe. São os LSDs (limited slip differential), diferenciais de deslizamento limitado. 

Tratam-se de diferenciais que permitem o movimento dos semi-eixos em velocidades distintas em baixa velocidade, mas que, conforme aumento da velocidade (ou do torque aplicado sobre o diferencial), vai blocando o diferencial.

Abaixo, um diferencial de deslizamento limitado da Quaife visto em corte: 
   

Este é um LSD do tipo helicoidal sensível ao torque aplicado. É também uma das peças que eu pretendo, um dia, colocar no Fiestinha (claro, há muitas outras prioridades na frente, mas quem sabe um dia...).

Observando-se a imagem em corte acima, facilmente se percebe como o LSD funciona: adiciona-se um pouco de ouro mágico dos anões da montanha sobre o diferencial, que irá travar progressivamente conforme aumento do torque aplicado (na verdade, essa é a forma de funcionamento básica de todos os tipos de LSD).

Em carros off-road, a principal vantagem do LSD é permitir que o veículo atravesse terrenos difíceis, evitando atolamentos ao tracionar os pneus com mais aderência.

Já em carros de pista, a vantagem está no contorno e nas saídas de curvas.

Quando o carro está no limite da aderência dos pneus, o LSD evita que a força seja direcionada apenas para a roda interna da curva, já que geralmente é a com menor aderência (seja em razão de menor massa sobre a roda, seja em razão da geometria e da configuração da suspensão).

Além disso, em saídas de curva, pode-se judiar mais cedo do acelerador, já que o LSD também evita o desperdício de potência em caso de destracionamento: com um diferencial aberto, basta que uma das rodas do carro destracione para que ele perca potência e esparrame. Com o LSD, ainda que uma das rodas destracione, a outra continuará tracionando e impulsionando o carro para fora da curva.

E de outro lado, usando um LSD, o carro ainda poderá andar em estacionamentos de shopping centers... 


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